Auá Mendes, artista indígena do Amazonas, desponta na cena da arte contemporânea do Brasil
“É uma arte sobre conexão, demarcação, respeito e proteção. É para que eu nunca me esqueça de tudo que foi feito para que eu estivesse viva, ontem, hoje e sempre”. Essa é a inspiração para a nova obra da Auá Mendes, 24, artista, grafiteira e designer indígena do povo Mura do Amazonas, que assina sua primeira fachada individual na cidade de Belém, no Pará.
Em um prédio que toma conta da vista da região do comércio, mais conhecida como Ver-o-Peso, a pintura chamada IXÉ MAKU traz à tona a cosmovisão de seu povo por meio da cor azul, que simboliza a conexão com os sonhos e retrata os animais como seres encantados, assim como crê seus ancestrais. A obra foi produzida como parte da programação da Bienal das Amazônias, que vai até dia 05 de novembro com o tema “Bubuia: Águas como Fonte de Imaginações e Desejos”.
Apaixonada por grafites, para fazer essa e outras obras, Auá desafia a gravidade ao subir em prédios de mais de 30 metros para expor sua manifestação artística nas paredes das cidades por onde passa. Suspensa em andaimes, ela usa tinta e técnicas para imprimir a sua forma de enxergar o mundo: uma visão que veio dos seus antepassados, foi silenciada pela colonização e agora, Auá expõe em plataformas gigantes, quase como um grito. “Acreditando no caminho ancestral que foi construído antes de mim, IXÉ MAKU é um portal que fala de enraizar o corpo para mirar como uma flecha certeira no céu”, conta a artista.
Nascida e criada em bairros periféricos de Manaus, além de plantações de algodão, macaxeira, jambu e açaí, Auá cresceu rodeada de pessoas predominantemente negras e indígenas. O primeiro contato com a arte e o ativismo foi com a própria mãe, que além de cantar, era envolvida com as melhorias do bairro onde viviam. “Minha mãe é uma grande inspiração. Ela resolvia as questões do bairro, falava com deputados, conselho tutelar, quem quer que seja”, conta.
A identidade Mura, entretanto, vem da parte paterna da família. O bisavô de Auá nasceu no território, em Autazes, e contava diversas histórias ao seu pai e avô. Desde o século XVII descritos como um povo navegante, de ampla mobilidade e conhecimento dos caminhos pelas águas, os Mura ocupam áreas do complexo hídrico dos rios Madeira, Amazonas e Perus.
Autazes, de onde vem a família de Auá, é uma região marcada por intensos conflitos com pecuaristas, que se opõem à demarcação das terras, até hoje não demarcadas oficialmente. No século XVIII, os Mura estavam no foco de disputas territoriais para os projetos de exploração de cacau na Amazônia. Hoje, o conflito com o agronegócio se mantém. Por conta desses conflitos de terra, ao longo dos anos, sofreram massacres e perdas demográficas, linguísticas e culturais.
De acordo com a Funai, a população de indígenas Mura se aproxima de 9.300, contudo, esse número só considera as pessoas aldeadas em terras indígenas demarcadas, o que exclui indígenas que vivem em territórios não demarcados e os habitantes dos centros urbanos.
Representatividade na cena artística
Formada em Tecnologia em Design Gráfico pela Faculdade Metropolitana de Manaus, foi na faculdade, por incentivo de um professor de História da Arte, que Auá mergulhou no dia a dia da arte. Com o impulso para criar, entrou na cena do grafite e do pixo Manauara, mas sentiu entraves para conquistar oportunidades.
“Apesar do Norte ser o território onde se concentra a maioria dos povos indígenas do Brasil, em Manaus existia a problemática de que havia muitas artes que representavam os indígenas, mas feitas por pessoas brancas. Eu me questionava: cadê os parentes daqui?”, diz.
Como mulher trans, Auá sabe que a cena é ainda mais difícil para artistas LGBTQIA+. Para encontrar esse espaço, fundou o Aquela Crew, coletivo para artistas LGBTQIA+ no grafite e participou também do TunipiQueen, que além da perspectiva de identidade de gênero, questionava a falta de representação indígena em territórios onde numericamente, eram os mais presentes.
“Nós éramos uma família. Nos unimos primeiro pela perspetiva da sobrevivência porque precisávamos um do outro, e depois, para o fortalecimento artístico. Foram essas e outras pessoas que me fizeram não desistir porque não era todo dia que eu tinha dinheiro para comer, para o transporte ou para o aluguel. Essa galera me incentivava a continuar acreditando no meu trabalho”, conta.