Palestina: Arte e cultura contra a opressão

Palestina: Arte e cultura contra a opressão

 A resistência e preservação da identidade do povo palestiniano através da arte e da cultura é o tema desta ediçãodo Jornal de Letras. No artigo que se segue destaca-se a forma como diversos eventos artísticos, organizados este ano em Portugal, transcenderam a criatividade e apoiaram a luta da Palestina, tornando-se atos políticos contra o seu “apagamento cultural”

“Qualquer poder humano pode sofrer resistência e ser mudado por seres humanos”. Após proferir esta frase, enquanto recebia a medalha que a National Book Foundation decidiu entregar-lhe devido ao excecional contributo para as letras americanas, Ursula K. Le Guin apressou-se a acrescentar: “A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.

O ano era 2014. O dia, 20 de novembro. Uma manhã de outono a cinco meses e muitos quilómetros de distância da noite de junho durante a qual três adolescentes israelitas haviam sido raptados e assassinados por dois membros do Hamas, desencadeando a famosa Operação Margem Protetora, campanha militar lançada pelas Forças Armadas de Israel contra a Faixa de Gaza, que, ao longo de 49 dias, provocou a morte de dois mil palestinianos (697 civis, 256 dos quais mulheres ou crianças) e 60 militares israelitas.

A 7 de outubro de 2023, um “copy paste” assustador de eventos, elevado a uma potência muito superior da versão de 2014, tomaria irremediavelmente o Mundo de assalto. E, de repente, dez anos após o discurso de agradecimento de Ursula Guin, as suas palavras ecoavam ainda com mais força e intensidade. “A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.
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É bom que não esqueçamos esta ideia, pois diversos líderes de Estados opressores, ao longo dos séculos, nunca deixaram de tê-la presente.

De facto, destruir a herança cultural e artística de um povo como forma de “apagá-lo” da História tem sido uma prática historicamente recorrente em conflitos armados, que, ao longo das últimas décadas, parece ter ganhado um impulso cada vez maior.

Basta pensar nos monumentos destruídos e nas casas saqueadas pelos exércitos de Adolf Hitler, no assassínio do escritor e ativista Ghassan Kanafani, autor de contos e romances que exploram a experiência palestina e a luta pelo retorno dos refugiados, por parte do serviço secreto israelita, em 1972, no bombardeamento das milenares esculturas dos Budas de Bamiyan, no Afeganistão, levado a cabo, em 2001, pelos Talibans, ou nas ações do Daesh, em 2005, que vão da destruição da cidade de Palmyra, património mundial da UNESCO, na Síria, ao roubo de manuscritos centenários das universidades de Mosul, no Iraque, e a destruição, com martelos, de artefactos do museu da cidade.

De cada vez que um monumento cai, sob as mãos de opressores, com ele cai parte de um povo. De cada vez que um artista é proibido de se exprimir, silenciado ou impedido de circular pelo Mundo e espalhar a sua mensagem, com ele é silenciada a democracia e a liberdade e a dignidade humana.

De cada vez que a redação de um jornal recebe um e-mail igual ao que chegou, no dia 4 de novembro deste ano, às caixas de entrada do JL, é tempo de escrever um tema de capa sobre o que se está a passar.
TEMPO DE (RE)AGIR

A mensagem em causa foi enviada pela organização do ciclo de programação musical Vale Perdido. Num comunicado à imprensa, Joaquim Quadros, Sérgio Hydalgo, Gustavo Blanco e Ricardo Lemos anunciavam “com enorme tristeza” que a vocalista e compositora Maya Al Khaldi e a produtora e artista sonora Sarouna, ambas palestinianas, que deveriam atuar a 13 de novembro no Centro Ismaili de Lisboa, infelizmente tinham-se visto “impossibilitadas de estar presentes em Lisboa”.



Em alturas como estas sabemos, não só que as coisas foram longe demais, mas também que chegou a hora de recordar que “a resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.

Foi o que fizeram os organizadores do evento, que, a fim de manterem o concerto do dia 13 de novembro, “um momento essencial para a narrativa programática do Vale Perdido 2024”, convidaram Dirar Kalash, um dos nomes percursores da música improvisada palestiniana, e Ãssia Ghendir, artista da Argélia, para “ocupar” o vazio deixado pelas artistas impedidas de viajar.

Nessa noite, Kalash entregou ao público a alma: A sua e a do seu povo. Quem, a 13 de novembro, entrou no Centro Ismaili de Lisboa, não saiu igual. Jamais esquecerá o canto chorado de Ãssia Ghendir a ser engolido pelo silêncio e pela escuridão da sala.

Jamais esquecerá as notas a curvarem-se em gemidos, a esticarem-se em gritos e, por fim, a calarem-se sob o barulho ensurdecedor de bombas, raids aéreos, alarmes e muros a desmoronarem-se.

Jamais esquecerá o homem – parecido connosco, vestido como nós, à frente de um computador portátil como o que muitos têm em casa – dobrado sobre si mesmo à medida que ouve, e nos convida a ouvir, o som da sua dignidade a ser bombardeada. “Passei a vida inteira em busca do som da minha terra. É este. Vejo que não o consideram um som agradável… mas é um som que tem de ser ouvido”.

    Passei a vida inteira em busca do som da minha terra. É este. Vejo que não o consideram um som agradável… mas é um som que tem de ser ouvido
    dirar kalash – músico

Acima de tudo, quem, a 13 de novembro, entrou no Centro Ismaili de Lisboa, jamais duvidará de que “a resistência e a mudança muitas vezes começam na arte”.
CINEMA QUE DÁ A VER

À semelhança do Vale Perdido, muitos outros eventos culturais que decorreram, este ano, no nosso país, assumiram-se como símbolo de resistência na luta à opressão do povo palestiniano.

Em maio, Kamal Aljafari, realizador palestiniano que tem trabalhado incessantemente na defesa da Palestina, preservando as suas histórias e denunciando a política opressora do estado de Israel, ocupou um lugar de destaque na 21ª edição do IndieLisboa, que apresentou uma retrospetiva da sua obra.

Nessa altura, em entrevista ao JL, revelou que, após o início da guerra, apesar de haver muitos sítios onde o interesse e a visibilidade dados a trabalhos ligados à Palestina aumentaram, fazer o seu trabalho “tornou-se mais difícil em alguns lugares, como na Alemanha”, onde vive atualmente.

“Acho que o cinema e as artes podem alterar as pessoas e mobilizá-los. É isso que tento fazer, mas sei que há um bloqueio dos grandes meios de comunicação social”, comentou o realizador.

    Acho que o cinema e as artes podem alterar as pessoas e mobilizá-los. É isso que tento fazer
    Kamal Aljafari – realizador

No final de outubro, foi a vez de o DocLisboa dar importância ao tema, apresentando, dentro da secção Riscos, Some Strings, uma obra poética quase infinita mas de alcance pragmático.

O poeta e professor Refaat Alareer e sete membros da família foram atingidos por ataques israelitas. No seu último poema, Se tenho de morrer, publicado cinco semanas antes de ser assassinado, Alareer apela aos que deveriam viver para criar um papagaio de papel – um objeto de resistência de longa data – com pedaços de fio.

Lançado em março de 2024, Some Strings tinha juntado, até outubro, mais de 100 artistas e seis horas de curtas-metragens.

Tal como o JL noticiou no seu nº  1399, de 15 de maio, o genocídio do povo palestiniano também não passou incólume na 18ª edição do Leffest. O festival dirigido por Paulo Branco contou com um programa especial multidisciplinar, que incluiu um ciclo de cinema, com filmes de diferentes épocas, onde passou, por exemplo, Mahmoud Darwish: As the land is the Language, de Simone Bitton e Elias Sanbar (e outros filmes de Bitton), ou Junction 48, de Udi Aloni, com a presença dos realizadores.
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Além disso, esteve patente a exposição: In-Between, de Khaled Jarada, artista visual de Gaza; aconteceu o concerto solidário de música erudita Make Freedom Ring, com angariação de fundos para a Médicos Sem Fronteiras – Fundo Regional para os Territórios Palestinianos Ocupados e países vizinhos, no Tivoli; e ainda uma sessão de poesia, no Teatro do Bairro.

Também a 11ª edição do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival, que divulga o cinema feito por mulheres oriundas de países do Mediterrâneo, reservou, este ano, uma secção especial, dedicada às realizadoras da diáspora palestiniana, além de programar, para a sessão de abertura, no dia 31 de outubro, o filme The Teacher, de Farah Nabulsi, palestiniana nascida e criada no Reino Unido, vencedora de um Bafta e nomeada para o Óscar de melhor Curta-Metragem.
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